quinta-feira, 6 de maio de 2010

Mais uma carta

"Escrevo-te estas mal traçadas linhas meu amor
Porque veio a saudade visitar meu coração
Espero que desculpes os meus erros por favor
Nas frases desta carta que é uma prova de afeição.
    
Talvez tu não a leias mas quem sabe até darás
Resposta imediata me chamando de 'Meu bem'
Porém o que me importa é confessar-te uma vez mais
Não sei amar na vida mais ninguém."
    
Legião Urbana
    
Escrevo-te esta carta para falar sobre saudade - a minha saudade. Saudade que atracou no meu peito, fazendo-o cais somente de desembarque. Nau que ancorou e nunca mais partiu em busca de outros mares. E começo esta sem formalidade porque saudade é moça sem etiqueta, mal educada, desprendada. Adentra o coração sem pedir licença, dele faz moradia, parte sem despedir-se e quando menos se espera a visita retorna, fala alto, inquieta, malcriada, só borda lembrança, só pinta nostalgia e não sabe varrer passado.
Perdoa-me a letra disforme, os traços tortos e mal desenhados. A mão treme enquanto desliza pelo papel escrevendo sentimentos, sentindo palavras. Deve ser a emoção, saber que tuas mãos vão tocar este papel e que teus olhos vão enxergar essas letras disformes, esses traços tortos e mal desenhados, mas que eu não vou poder sentir o toque aveludado das tuas mãos abrandando minha dor, acolhendo-me com um abraço apaziguador como quando desmoronava no teu colo pedindo abrigo nem vou poder olhar no fundo dos teus olhos e ver o Sol amarelo-ouro que se espreguiçava no horizonte da tua pupila ao ver meu semblante nascendo diante do teu. E o coração segue ditando as palavras para minha mão.
Acendo mais um cigarro. Ao lado uma dose de whisky. O relógio marca 03h57min da madrugada. No rádio uma canção me faz lembrar aquele Verão que passei ao lado teu. E eu cantarolo a nossa canção sem ti, tua voz rouca cantarola somente na memória, e eu sigo a canção - um dueto de um. A lembrança daqueles dias de Sol a pino, noites de céu empoeirado de estrelas, vaga-lumes no olhar, riso faceiro, face corada, samba no coração e borboletas no estômago arde, resplandece, vibra, ofusca os campos da memória. Depois que partiste é Verão apenas nas recordações. Contigo o Verão também partiu. O Sol adormeceu numa nuvem nublada, as estrelas do céu foram varridas, os vaga-lumes do nosso olhar foram apagados por chamas de ira, inundou-se de lágrimas o riso, o corado da face desbotou, o samba no coração desafinou e as borboletas de asas partidas no estômago desmaiaram. Sem ti é só Inverno. Chuva de melancolia que me banha. Solidão que me congela. Saudade nevando incessantemente dentro de mim, cobrindo a memória com um manto frio de lembranças.
O porta-retrato emoldurado de saudade sobre o criado-mudo tagarela tantas recordações. A fotografia amarelecida tem rasuras de tempo, só não se atreve o tempo a rasurar tua lembrança. O instante aprisionado pelas lentes da câmera fotográfica eternizando o momento em detalhes que escaparia as lentes da retina. Eu posso ver o Sol que fazia na tua pupila naquele dia, mas em vão tento sentir o toque aveludado das tuas mãos.
Outra noite insone atravesso, e essa saudade esperta não adormece. A Lua me espia aconchegada no ombro das estrelas. Elas fazem um cafuné na Lua, enquanto a vigília não se encerra. Lua e estrelas recortadas contra um fundo preto azulado. Lua, estrelas e céu preto amanhecendo são a minha companhia nessas noites de solidão e saudade sufocante.
A fumaça do cigarro acinzenta o olhar embaçado de tristeza. Uma dose de whisky para duas doses de saudade, embriago-me com lembranças.
Sinto-me ínfima perto da saudade que cresce cá dentro do peito. Inútil tentar tornar o solo árido, o adubo que o fertiliza é amor. E se podo a saudade, ela cresce mais robusta. Se a arranco pela raiz, o arado da memória prepara o solo para receber mais sementes de saudade. Penso que nem o tempo seja a erva-daninha da saudade. E o jardim de saudade que cultivei agora cuida do seu jardineiro.
Perdoa-me os borrões no papel. O coração transbordou saudade, e os olhos marejados de saudade derramaram-na, escorrendo pela face e pingando no papel. Um pedaço do mar de saudade que guardo no peito vai contigo.
Espero que estejas bem, desejo que teus dias sejam de calmaria, mas não esperes de mim que eu deseje que encontres um novo amor, é eu sei vais dizer que eu tenho que aprender a ser desprendida, ora fazer o que se essa saudade me prendeu a ti? Saudade é nó que nos amarra ao passado. Manda-me uma carta e não se esqueças de perfumá-la com teu cheiro. Durmo abraçada as outras cartas, até o perfume escapar, como se me abraçasse a ti. E mesmo quando o perfume delas escapa, ainda sinto teu cheiro, porque teu cheiro não escapa da memória. Deleita-se a saudade com o teu perfume.
Desculpa se te sou inconveniente arrastando passados mortos, ontens perdidos colecionando cartas do que passou. Tua ausência ainda me dói, e essa é a maneira que encontrei de te fazer presente. Cartas minimizam a distância, a indiferença que ficou entre nós. Cartas trazem um pouco de ti para mim, é como se eu te lesse. Cartas levam um pouco da minha saudade para ti, é como se tu me lesses.
    
Com esmero da tua (e para sempre tua) amada.
    
P.S.: Essa noite decobri que sou uma metáfora de saudade!

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